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segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O zumbido vitorioso do moscardo...

"Em 1941, Francisco Inácio bateu Faísca e revoltou-se contra a aborrecida burocracia dos favoritos da Volta a Portugal.

Dizem que trazia atrás de si um zumbido da fúria com que ia dando aos pedais.
Francisco Inácio.
Não parece nome de ciclista, mas é.
Nelson Rodrigues também dizia que Coutinho, esse mesmo, parceiro de Pelé no Santos, não tinha nome de jogador de futebol. Querem ver?
«Lembro-me que ao ouvir falar em Coutinho, pela primeira vez, tomei um susto. Comentei, então, de mim para mim: ‘Coutinho não é nome de jogador de futebol!’. De facto, o nome influi muito para o êxito ou para o infortúnio. Napoleão, se tivesse outro nome, já seria muito menos napoleónico. Outro exemplo: por que é que Domingos da Guia foi o que foi? Porque esse ‘da Guia’ dava-lhe um halo de fidalgo espanhol, italiano, sei lá. Ainda hoje, o sujeito treme quando ouve falar em ‘da Guia’. Mas o Coutinho tem contra si o nome. O sujeito que se chama apenas Coutinho dá logo a ideia de pai de família, de Aldeia Campista, Vila Isabel, Engenho Novo, com oito filhos nas costas e a simpatia pungente de um barnabé».
Francisco Inácio tinha contra si o nome. Era mais como se fosse funcionário público de sair às cinco e meia da tarde com o jornal debaixo do braço para ler no autocarro.
Mais ainda: no ano de 1941, que é o ano sobre o qual quero falar, Francisco Inácio tinha contra si o Faísca.
José Albuquerque. Ora diacho! Mais um sem nome de ciclista. Mas tinha a alcunha: Faísca! Com ponto de exclamação. Um Faísca pode muito bem somar duas vitórias na Volta a Portugal que ninguém se espanta. E pode até ter sido atropelado, como foi, isso já no Sporting, depois de ter corrido pelo Campo d’Ourique.
Faísca foi o vencedor em 1940.
Ganhara também em 1938.
Em 1941, era o grande favorito.
Íamos para a última etapa e Francisco Inácio zumbia na frente. Mais de dois mil quilómetros de esforço bruto, sanguíneo. Pouco importa o nome ao fim de mais de dois mil quilómetros e, de um momento para o outro, só faltavam setenta e cinco.
Ponte de Lima: o Faísca prepara a fuga. Assim, de mansinho, fósforo riscando a lixa, de repente chama brusca.
Joaquim Manique tem um furo.
Manique é nome de ciclista. Com intendência e o resto.
João Lourenço era rodeado em Santa Marta de Tortozendo pelo Rancho das Lavradeiras. Vencera a etapa, mas o metódico Inácio continuava na frente da classificação na véspera do fim.
Descia em vertigens de velocidade. Correndo os riscos das ladeiras, dos precipícios. Corajoso, também, sem o modo funcionário de viver de que falava O’Neill, ele que, para mim, tinha nome de funcionário público com ordem da mulher para só fumar à janela, longe da sogra.
Ninguém vira nele um vencedor.
Às vezes, os vencedores passam-nos injustamente despercebidos mesmo que ainda não tenham sido vencedores e só venham a sê-lo um pouco mais para diante. Vencedor é um nome, também. Francisco Inácio devia poder exibi-lo no Bilhete de Identidade.
Faltava apenas a etapa.
Decisiva. Plena.
Francisco Inácio, José Martins, Aniceto Bruno, José Albuquerque, João Lourenço, Aristides, Trindade, Rebelo, Baltazar e Francisco Duarte. era assim que se dispunham na classificação.
O Faísca falhara a fuga.
Perdia-se pelo meio dos outros.
Como Trindade, Alfredo Trindade, o grande Trindade, agora já no Belenenses.
Os anos tinham atropelado Trindade tal como o automóvel desgovernado atropelara Faísca no ano anterior.
Azarado Faísca: dois furos na 18ª etapa, junto a Mirandela, tinham-no feito tombar cinco minutos.
É como quem tomba de um terceiro andar.
Viana do Castelo-Porto: os setenta e cinco quilómetros da vida de Francisco Inácio.
Dezassete etapas de amarelo até aos braços erguidos do Estádio do Lima.
João Lourenço surge fantástico, brilhante. É o primeiro. Fora o primeiro no da Póvoa do Varzim e o primeiro em Viana do Castelo. Conquistou dez etapas dessa Volta de 1941.
Entra no Lima sob a ovação popular, espontânea.
Um grupo coeso na sua peugada. José Albuquerque, o Faísca, sabe que o seu sonho da terceira Volta se quedará pelo quarto lugar. A tarde é de Francisco Inácio.
É um homem de desassombros, diziam dele.
Podia não ter nome de ciclista nem de jogador de futebol, mas levava apelido vitorioso de estradista revoltado contra a burocracia dos favoritos.
Nas bancadas, os espectadores ouviam-no zumbir como um moscardo de Rimsky Korsakov."

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