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quarta-feira, 21 de março de 2018

O copinho de leite...

"King Kong chegou a pesar cerca de 180 quilos. Mas Singh esteve-se nas tintas e ergueu-o no ar como uma pena...

O King Kong não era para brincadeiras. Não estou a falar do macacão pendurado no alto de Empire State Building, agarrando Fray Way com uma mão e sacudindo aviões com a outra como se fossem mosquitos incomodativos. Falo de um menino que nasceu na Hungria lá pelos inícios do século passado e foi crescendo sem parar até pesar cerca de 180 quilos, não deixando por isso de ser um tipo bonacheirão que concitava a simpatia de toda a gente.
Chamava-se Emile Czaja e, aos 18 anos, tornou-se lutador daquela luta livre que, hoje em dia, é conhecida por wrestling e que em Portugal se designou durante muito tempo como luta livre americana.
Czaja veio a Lisboa em 1953, mas primeiro explico que a alcunha de King Kong se lhe colou à pele quando fez o papel equivalente num filme indiano meio manhoso datado de 1945. Nada de supinamente estranho já que a Índia se tornara, nessa altura, uma das mecas da luta livre, de tal forma que o bom Emile enfrentou o paquistanês Hamida Pahalwan em Bombaim perante uma incrível multidão de 200 mil pessoas!
No Parque Mayer não cabiam certamente 200 mil pessoas. Mas o combate foi anunciado com pompa. «A sala vai ser pequena para conter o público ávido de emoções fortes. O campeão de Portugal e da Europa, José Luís, defrontará o campeão do mundo, King Kong. José Luís está numa forma magnífica. Mas King Kong não é para brincadeiras!» Estão a ver? O que é que eu dizia?
José Luís, natural de Monchique, tinha um sistema de treino curioso: dava cabeçadas contra o tronco de uma palmeira de forma a reforçar a força do golpe. E também tinha uma alcunha: O Pastelão. Certa vez, por uma questão de mulheres, fez uma espera ao grande Tarzan Taborda em frente à Casa Campião, assim mesmo com i, na Rua do Amparo, à Baixa lisboeta. Um destes dias falarei aqui dele e de outros valentes como ele, Lobo da Costa, Mateus ou o Ruivo, por exemplo.
Para já King Kong.
Acabaria por entrar em vários outros filmes indianos, geralmente fazendo o papel dele próprio.
Tinha uma barba imponente, quase tão imponente como o seu corpanzil avantajado. «O público que viu combater King Kong contra Degomme e Garnier nunca julgou que estava ali ‘alguém’ da luta livre lá porque este lutador tem uma barba fora do normal», li numa reportagem do Diário de Lisboa. «De certo irá fazer José Luís comer as passas do Algarve».
Assustador, convenhamos.
Mas, como já disse, Emile era um bonzão pachorrento e com paciência para aturar chatos do calibre de Darah Singh. Como o nome indica, Darah Singh é sikh e, morreu velhinho e muito considerado pelo seu trabalho como ator de cinema, realizador e político. Na sua juventude chegou a pesar 127 quilos e a ter uma peitaça de 130 centímetros de diâmetro.
Há uma fotografia que se tornou emblemática dos combates entre os dois calmeirões: Singh está encavalitado nos ombros de King Kong tal como o macacão se encavalitou no alto do Empire State; desfere-lhe golpes do pescoço e no cachaço; por seu lado lado, Emile aguenta bovinamente o ataque do seu adversário. Não fica explícito quem sairá vencedor de tão estúpida contenda. Mas a calma do húngaro é admirável, digna de um daqueles búfalos de água que se multiplicam pelos arrozais de Kerala.
A foto é datada: 12 de dezembro de 1952. Um dos grande acontecimentos da luta livre indiana de todos os tempos. O próprio Pandita Nehru era esperado para assistir ao embate, mas faltou. O público que se apertava como sardinhas em lata em redor do ringue da cidade de Bahtgaon, não longe de Nova Delhi, nem queria acreditar quando Dahra Singh desceu dos ombros de King Kong e resolveu erguê-lo no ar, acima da cabeça, como se fosse uma pena. Uma pena de cerca de 180 quilos! Ouviram-se ohs! de admiração. E um ou outro palavrão em hindi ou urdu.
Dhakar Pehalwan foi testemunha ocular do acontecimento. Muitos anos mais tarde diria: «Foi um dia importante para nós. Não apenas por causa do combate. Também por causa da inauguração da luz eléctrica na cidade. Singh começou a rodar King Kong lá no alto. E King Kong gritava de medo, incapaz de imaginar o que ia acontecer-lhe».
Darah Singh foi magnânimo com o seu opositor. Viria a pousá-lo simplesmente no solo depois de o árbitro o ter dado como vencedor. Emile podia não ser para brincadeiras, mas sentiu que o tinham usado como um joguete. Encolheu os ombros e seguiu a sua vida, faceiro como até aí.
Pahelwan era o responsável por fornecer ao vencedor aquilo que ele mais desejasse no final daquele esforço bruto. Singh tinha sede e quis beber leite. «Levei-lhe um balde que continha aí uns dez litros. Encostou-o à boca e despejou-o de golada».
No meu tempo de escola diríamos que Darah não passava de um copinho de leite."

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